Por João Paulo da Silva
- Diga-me, Seu João, por que pensa que está morto?
- Existem evidências, doutor.
Pausa reflexiva do médico.
- O senhor trabalha?
- Sou operário.
- Gosta do que faz?
- Deveria? Está claro que o doutor não percebe as evidências, não é?
- Infelizmente, não. Mas se o senhor estiver disposto a dividi-las comigo, posso tentar perceber.
Nova pausa.
- Algum problema, Seu João? Sente-se à vontade?
- Não muito.
- Quer que feche a janela?
- Não, não, não! Seria o mesmo que fechar a tampa do caixão e pôr a última pá de terra.
- Por que ainda insiste nessa história? Por que pensa que está morto?
- Porque realmente estou.
O médico coça o queixo, intrigado.
- Se está verdadeiramente morto, como posso vê-lo? O senhor é um espírito?
- Não se trata desse tipo de morte.
- De que tipo então?
O paciente deixou um riso debochado escorrer pelo canto da boca. Após um suspiro, provavelmente de impaciência, o médico continuou:
- Diga-me, Seu João, o senhor já amou?
- E o que é o amor? Como é que se sabe quando é amor?
- Bom, o amor é gostar de estar perto, é querer bem o outro ser, é poder completar a si mesmo no outro... essas coisas.
- Isso é pieguice, nada mais.
Silêncio. O médico e o paciente se estudam através de olhares. Por fim, o paciente fala:
- Diga-me, doutor, o senhor “cheira”?
- Já cheirei. Influência freudiana.
- O senhor fuma?
- Dois maços.
- Bebe?
- Socialmente.
- Trepa?
- Não me parece um termo técnico, nem adequado.
- Trepa ou não?
- Às vezes.
- O senhor...
- Espere aí! Receio que o psicanalista aqui seja eu.
- Não, doutor. Todos somos.
Médico sem palavras. O paciente prossegue.
- É por isso, doutor, que pensa que está vivo?
- Isso o quê?
- Fumar, beber, trepar. É por isso?
- Talvez.
- Ouça, doutor, nunca sentiu olhos a lhe vigiar?
- Não.
- Nunca sentiu que lhe controlam a vida? Nunca se sentiu como um cordeiro num rebanho qualquer?
- Isso é absurdo! Ninguém controla minha vida.
O paciente soltou uma risada longa e gorda.
- O senhor me diverte com sua inocência, doutor. Ouça, a sua vida é programada desde o nascimento até o óbito. O senhor faz parte de um sistema, assim como eu e todas aquelas pessoas lá fora. Acordar, comer, trabalhar, votar, fumar, beber, amar, dormir. Estamos presos. Há tempo para tudo, e tudo está delimitado. Mas isso não é o pior. O pior é saber que os outros cordeiros desconhecem o fato, isso realmente é pior. Compreende?
- Eu não sei o que di...
- Não. Não diga nada, doutor. Eu sei como é. Venha comigo até a janela. Olhe lá fora. Vê? As pessoas estão sempre apressadas, atrasadas, ocupadas demais para notar. Vê aquele mendigo ali? E aquele menino no sinal? E aquele sujeito correndo para pegar o coletivo? Vai chegar atrasado na senzala. Venha, vamos nos sentar novamente. Aceita um copo d’água, doutor? Onde fica a geladeira?
- Ali. Ponha um pouco de açúcar, sim?
O médico bebe a água com açúcar que o paciente lhe oferece. Um suspiro longo e um leve arroto, o médico diz:
- Quem controla?
- A resposta para essa pergunta está presente no dia-a-dia, nas relações de “Sim, senhor” e “Não, senhor”. Mas acho que a pergunta que deseja fazer não é quem, e sim por quê?
- Então, por quê?
- Existe uma ordem a ser mantida, doutor.
- E que ordem é essa?
- Ordem e progresso, o meu fracasso é o teu sucesso.
O médico está pálido. O paciente pergunta:
- Ainda se sente vivo, doutor?
- Não muito.
- É, eu sei bem como é estar morto. Venha cá, doutor. Vamos voltar à janela.
Longa pausa. Silêncio entre eles, quebrado apenas pelos barulhos externos. Apitos, buzinas, gritos, gemidos, palavrões, ruídos de fábricas, mãos trabalhando e dedos em máquinas de escrever.
- Você viu, doutor?
- O quê?
- Já passou.
- O quê?
- A vida, doutor. A vida
- Diga-me, Seu João, por que pensa que está morto?
- Existem evidências, doutor.
Pausa reflexiva do médico.
- O senhor trabalha?
- Sou operário.
- Gosta do que faz?
- Deveria? Está claro que o doutor não percebe as evidências, não é?
- Infelizmente, não. Mas se o senhor estiver disposto a dividi-las comigo, posso tentar perceber.
Nova pausa.
- Algum problema, Seu João? Sente-se à vontade?
- Não muito.
- Quer que feche a janela?
- Não, não, não! Seria o mesmo que fechar a tampa do caixão e pôr a última pá de terra.
- Por que ainda insiste nessa história? Por que pensa que está morto?
- Porque realmente estou.
O médico coça o queixo, intrigado.
- Se está verdadeiramente morto, como posso vê-lo? O senhor é um espírito?
- Não se trata desse tipo de morte.
- De que tipo então?
O paciente deixou um riso debochado escorrer pelo canto da boca. Após um suspiro, provavelmente de impaciência, o médico continuou:
- Diga-me, Seu João, o senhor já amou?
- E o que é o amor? Como é que se sabe quando é amor?
- Bom, o amor é gostar de estar perto, é querer bem o outro ser, é poder completar a si mesmo no outro... essas coisas.
- Isso é pieguice, nada mais.
Silêncio. O médico e o paciente se estudam através de olhares. Por fim, o paciente fala:
- Diga-me, doutor, o senhor “cheira”?
- Já cheirei. Influência freudiana.
- O senhor fuma?
- Dois maços.
- Bebe?
- Socialmente.
- Trepa?
- Não me parece um termo técnico, nem adequado.
- Trepa ou não?
- Às vezes.
- O senhor...
- Espere aí! Receio que o psicanalista aqui seja eu.
- Não, doutor. Todos somos.
Médico sem palavras. O paciente prossegue.
- É por isso, doutor, que pensa que está vivo?
- Isso o quê?
- Fumar, beber, trepar. É por isso?
- Talvez.
- Ouça, doutor, nunca sentiu olhos a lhe vigiar?
- Não.
- Nunca sentiu que lhe controlam a vida? Nunca se sentiu como um cordeiro num rebanho qualquer?
- Isso é absurdo! Ninguém controla minha vida.
O paciente soltou uma risada longa e gorda.
- O senhor me diverte com sua inocência, doutor. Ouça, a sua vida é programada desde o nascimento até o óbito. O senhor faz parte de um sistema, assim como eu e todas aquelas pessoas lá fora. Acordar, comer, trabalhar, votar, fumar, beber, amar, dormir. Estamos presos. Há tempo para tudo, e tudo está delimitado. Mas isso não é o pior. O pior é saber que os outros cordeiros desconhecem o fato, isso realmente é pior. Compreende?
- Eu não sei o que di...
- Não. Não diga nada, doutor. Eu sei como é. Venha comigo até a janela. Olhe lá fora. Vê? As pessoas estão sempre apressadas, atrasadas, ocupadas demais para notar. Vê aquele mendigo ali? E aquele menino no sinal? E aquele sujeito correndo para pegar o coletivo? Vai chegar atrasado na senzala. Venha, vamos nos sentar novamente. Aceita um copo d’água, doutor? Onde fica a geladeira?
- Ali. Ponha um pouco de açúcar, sim?
O médico bebe a água com açúcar que o paciente lhe oferece. Um suspiro longo e um leve arroto, o médico diz:
- Quem controla?
- A resposta para essa pergunta está presente no dia-a-dia, nas relações de “Sim, senhor” e “Não, senhor”. Mas acho que a pergunta que deseja fazer não é quem, e sim por quê?
- Então, por quê?
- Existe uma ordem a ser mantida, doutor.
- E que ordem é essa?
- Ordem e progresso, o meu fracasso é o teu sucesso.
O médico está pálido. O paciente pergunta:
- Ainda se sente vivo, doutor?
- Não muito.
- É, eu sei bem como é estar morto. Venha cá, doutor. Vamos voltar à janela.
Longa pausa. Silêncio entre eles, quebrado apenas pelos barulhos externos. Apitos, buzinas, gritos, gemidos, palavrões, ruídos de fábricas, mãos trabalhando e dedos em máquinas de escrever.
- Você viu, doutor?
- O quê?
- Já passou.
- O quê?
- A vida, doutor. A vida