Tuesday, June 8, 2010

Amigos e amigas,

Quinta-feira, faço um novo post da campanha contra o veto de Lula ao fim do fator previdenciário e ao aumento das aposentadorias, principal temática do blog neste momento.

Isso porque, acabo de ler um texto, um tanto o quanto perturbador, que merece ser lido com atenção por todos vocês.

Seu autor, fala da morte.

Não da morte física, mas da morte da consciência, para qual esse blog, sem falsa modéstia, tenta ser um caminho para a ressurreição.

Sem amém, é claro e por favor.


Ah, já ia esquecendo, o texto é de João Paulo Silva, do ótimo blog As Crônicas de João. Visitem http://ascronicasdojoao.blogspot.com/

Abraços

Adriano Espíndola


Mortos

Por João Paulo da Silva

- Diga-me, Seu João, por que pensa que está morto?
- Existem evidências, doutor.
Pausa reflexiva do médico.
- O senhor trabalha?
- Sou operário.
- Gosta do que faz?
- Deveria? Está claro que o doutor não percebe as evidências, não é?
- Infelizmente, não. Mas se o senhor estiver disposto a dividi-las comigo, posso tentar perceber.
Nova pausa.
- Algum problema, Seu João? Sente-se à vontade?
- Não muito.
- Quer que feche a janela?
- Não, não, não! Seria o mesmo que fechar a tampa do caixão e pôr a última pá de terra.
- Por que ainda insiste nessa história? Por que pensa que está morto?
- Porque realmente estou.
O médico coça o queixo, intrigado.
- Se está verdadeiramente morto, como posso vê-lo? O senhor é um espírito?
- Não se trata desse tipo de morte.
- De que tipo então?
O paciente deixou um riso debochado escorrer pelo canto da boca. Após um suspiro, provavelmente de impaciência, o médico continuou:
- Diga-me, Seu João, o senhor já amou?
- E o que é o amor? Como é que se sabe quando é amor?
- Bom, o amor é gostar de estar perto, é querer bem o outro ser, é poder completar a si mesmo no outro... essas coisas.
- Isso é pieguice, nada mais.
Silêncio. O médico e o paciente se estudam através de olhares. Por fim, o paciente fala:
- Diga-me, doutor, o senhor “cheira”?
- Já cheirei. Influência freudiana.
- O senhor fuma?
- Dois maços.
- Bebe?
- Socialmente.
- Trepa?
- Não me parece um termo técnico, nem adequado.
- Trepa ou não?
- Às vezes.
- O senhor...
- Espere aí! Receio que o psicanalista aqui seja eu.
- Não, doutor. Todos somos.
Médico sem palavras. O paciente prossegue.
- É por isso, doutor, que pensa que está vivo?
- Isso o quê?
- Fumar, beber, trepar. É por isso?
- Talvez.
- Ouça, doutor, nunca sentiu olhos a lhe vigiar?
- Não.
- Nunca sentiu que lhe controlam a vida? Nunca se sentiu como um cordeiro num rebanho qualquer?
- Isso é absurdo! Ninguém controla minha vida.
O paciente soltou uma risada longa e gorda.
- O senhor me diverte com sua inocência, doutor. Ouça, a sua vida é programada desde o nascimento até o óbito. O senhor faz parte de um sistema, assim como eu e todas aquelas pessoas lá fora. Acordar, comer, trabalhar, votar, fumar, beber, amar, dormir. Estamos presos. Há tempo para tudo, e tudo está delimitado. Mas isso não é o pior. O pior é saber que os outros cordeiros desconhecem o fato, isso realmente é pior. Compreende?
- Eu não sei o que di...
- Não. Não diga nada, doutor. Eu sei como é. Venha comigo até a janela. Olhe lá fora. Vê? As pessoas estão sempre apressadas, atrasadas, ocupadas demais para notar. Vê aquele mendigo ali? E aquele menino no sinal? E aquele sujeito correndo para pegar o coletivo? Vai chegar atrasado na senzala. Venha, vamos nos sentar novamente. Aceita um copo d’água, doutor? Onde fica a geladeira?
- Ali. Ponha um pouco de açúcar, sim?
O médico bebe a água com açúcar que o paciente lhe oferece. Um suspiro longo e um leve arroto, o médico diz:
- Quem controla?
- A resposta para essa pergunta está presente no dia-a-dia, nas relações de “Sim, senhor” e “Não, senhor”. Mas acho que a pergunta que deseja fazer não é quem, e sim por quê?
- Então, por quê?
- Existe uma ordem a ser mantida, doutor.
- E que ordem é essa?
- Ordem e progresso, o meu fracasso é o teu sucesso.
O médico está pálido. O paciente pergunta:
- Ainda se sente vivo, doutor?
- Não muito.
- É, eu sei bem como é estar morto. Venha cá, doutor. Vamos voltar à janela.
Longa pausa. Silêncio entre eles, quebrado apenas pelos barulhos externos. Apitos, buzinas, gritos, gemidos, palavrões, ruídos de fábricas, mãos trabalhando e dedos em máquinas de escrever.
- Você viu, doutor?
- O quê?
- Já passou.
- O quê?
- A vida, doutor. A vida

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