Saturday, September 26, 2009

Citado por diversos ministros no julgamento da extradição de Cesare Battisti, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello concluiu parecer sobre a matéria. Segundo ele, o ato de refúgio não é vinculado – como sustentou o relator, min. Peluso –, mas discricionário, e "obviamente impede a extradição".
Afirmou, ainda, existirem "indiscutíveis razões ensejadoras" de fundado temor de perseguição política. Sustenta, por fim, que em caso de empate, não deve o presidente do STF votar: "o empate será interpretado como favorável ao acusado". Com isso, já se manifestaram a favor do refúgio e contra a extradição alguns dos mais renomados professores do país, como Paulo Bonavides, José Afonso da Silva, Dalmo de Abreu Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello.
A causa é defendida no STF pelo professor Luís Roberto Barroso.


Parecer:
O ilustre advogado e professor Luís ROBERTO BARROSO, acosta documentos instrutórios relativos ao refúgio e ao processo de extradição de CESARE BATTISTI, que ora se processa ante o Egrégio Supremo Tribunal Federal, formulando a seguir, em vista deles, a seguinte:

CONSULTA

"I - O ato do Ministro da Justiça que concedeu refúgio político a CESARE BATTISTI configura ato vinculado ou envolveu o exercício de competência compreensiva de aspecto discricionário, cuja avaliação e consequente decisão não pode ser substituída pelo juízo do Poder Judiciário, maiormente em face das circunstâncias concretas que o envolvem?
II - Vindo a ocorrer empate na votação da extradição, deve ser aplicada a mesma regra do Regimento Interno prevista para o caso de "habeas corpus", de acordo com a qual, a teor do art. 146, parágrafo único, o Presidente da Corte não vota e o empate será interpretado como favorável ao acusado?"
Ao indagado respondo nos termos que seguem.

PARECER

1. No Estado de Direito não há ato algum que escape ao exame de legalidade efetuável pelo Poder Judiciário. Isto não significa, entretanto, que todos os aspectos envolvidos nos atos administrativos sejam reexamináveis pelo Poder Judiciário. Em muitos deles o próprio núcleo do ato, isto é, sua essência, terá sido pelo próprio Direito, caracterizado como um objeto de alçada de outro Poder, donde, predefinido como um tópico alheio ao espaço inerente à esfera sobre a qual incide a correção jurisdicional, esfera esta, que é a da legalidade e não a da apreciação discricionária.

2. De outra feita anotamos que "embora seja comum falar-se em «ato discricionário», a expressão deve ser recebida apenas como uma maneira elíptica de dizer «ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou que o compõem». Com efeito, o que é discricionária é a competência do agente quanto ao aspecto ou aspectos tais ou quais, conforme se viu".1
Logo, a verdadeira questão é a de saber-se sobre quê poderá incidir a correção judicial do ato e sobre quê não poderá incidir sob pena de invadir esfera da alçada do Executivo. Naquilo que estiver em causa aspecto discricionário, só cabe juízo administrativo não havendo espaço, então, para juízo de legalidade.

3. A antítese do campo de apreciação discricionária é a que se expressa no chamado ato vinculado. A identificação dele auxilia, então, por antinomia, o reconhecimento da esfera antitética na qual descabe interferência da revisão judicial. O eminente Min. CEZAR PELUSO, por ocasião de seu voto no caso CESARE BATTISTI, honrou-nos com a citação de obra teórica de nossa lavra, assumindo, dessarte, como correta a qualificação que fizemos do que seria tal ato.
Disse, então, o reputado magistrado que, diversamente dos atos discricionários, nos vinculados a lei disciplina "a conduta do agente público estabelecendo de antemão e em termos estritamente objetivos, aferiveis objetivamente, quais as situações de fato que ensejarão o exercício de uma dada conduta e determinando, em seguida, de modo completo, qual o comportamento único que, perante aquela situação de fato, tem que ser obrigatoriamente tomado pelo agente. Neste caso, diz-se que existe vinculação, porque foi pré-traçada pela regra de Direito a situação de fato, e o foi em termos de incontendível objetividade" .

4. Visto isto, para saber-se se o ato de "refúgio" e se a "extradição" comportam apreciação administrativa discricionária ou se, pelo contrário, respondem a um modelo legal que haja delineado uma situação de fato caracterizada de modo inteiramente objetivo, isto é, reconhecível com incontendível objetividade, apontando diante dela a conduta única exigida pela regra de direito, tudo se resume a aplicar as noções referidas. É o contraste do modelo legal com os atos supostos que oferece resposta simples ao questionado.

5. De acordo com o art. 10 da lei n° 9.474, de 22 de julho de 1997, "Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I -devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;".
Por acaso "fundados temores de perseguição" é a descrição de algo que se pode reconhecer de modo plenamente objetivo ou tal desenho normativo comporta, nas situações concretas da vida real, mais de uma intelecção aceitável ? Ou seja: é induvidoso, é unanimemente sempre certo, que dada situação responde, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, ao que caberia denominar como "fundados temores de perseguição" ou inversamente, a captação desta idéia padece de certa fluidez, de uma imprecisão que levaria certos sujeitos a reputarem inexistente afigura normativa, do mesmo passo que conduziria outros a aceitarem-na como ocorrente, sendo razoável a opinião abraçada tanto por um quanto por outros ?

6. Parece extreme de dúvidas que a noção referida não se encaixa entre aquelas cujo reconhecimento é de universal coincidência, mas pelo contrário, enseja o prosperar de intelecções contraditórias. Isto ocorre porque, para servirmo-nos da insuperável lição de RENATO ALESSI, estão em pauta "condizioni di falto suscetibili, oltre che di un accertamento, anche di un aprezzamento, di una valutazione della misura nella quale sussistono", por se tratar de "condizioni che possono sussistere in grado maggiore o minore" -"condições que podem subsistir em grau maior ou menor" (principi di Diritto Amministrativo, Giuffre Ed., 43 ed., 1979, vol I, pag. 236). Em síntese e conclusão: não está em pauta no caso do refúgio e, pois, da extradição de CESARE BATTISTI, um ato vinculado, mas pelo contrário, um ato que comporta teor de discricionariedade e nesta mesma medida, insuscetível de substituição do juízo administrativo que lhe concedeu refúgio pelo juízo jurisdicional, fato que obviamente impede sua extradição, porquanto o art. 33 da mencionada lei n° 9.474, de 22 dejulho de 1997, estabelece de modo claro que: "O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio".

7. Aliás, no caso concreto, diante dos elementos acostados, há indicações veementes de que existiam indiscutíveis razões ensejadoras de 'fundados temores de perseguição". Com efeito, preliminarmente, cabe anotar que é induvidoso que os fatos que lhe foram apontados como justificadores de sua condenação, na Itália (em um segundo julgamento, na "reformatio in pejus" ocorrida, pois no primeiro a acusação de homicídio foi atribuída a outro sujeito e não a ele) estão referidos, pela própria sentença, como crimes cometidos sob inspiração política e com propósitos políticos, tanto que esteve preso em prisão destinada a autores de crimes políticos que não estiveram envolvidos em ações que causaram morte. O que impressiona na verdade, além do fato de que foi julgado em período notoriamente de grande conturbação, no qual era extremamente exacerbado o sentimento de repúdio e repressão aos participantes do movimento de esquerda ao qual era filiado, é a circunstância de ainda hoje, décadas depois daqueles eventos, inexistir um clima de mínima serenidade em relação a eles.

8. Mesmo deixando de lado, o fato de que a imputação de crimes de morte contra CESARE BATTISTI, em julgamento à sua revelia, assentou-se sobre depoimento dos chamados "pentiti", justamente os que dantes haviam sido condenados por este mesmo fato (que no julgamento anterior não lhe havia sido irrogado pela Justiça Italiana), é o rancor atualmente evidentíssimo em diversas manifestações provenientes de autoridades italianas, o que, não pode deixar de suscitar "fundados temores de perseguição", identificados seja pelo ângulo objetivo ou subjetivo.
Com efeito, um parlamentar italiano, da base de apoio ao Governo do Primeiro Ministro Berlusconi, como noticiam elementos acostados à consulta, manifestou-se em relação ao refúgio concedido afirmando; "Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas (... entre os quais pelo menos nós brasileiros teríamos de incluir os Ministros do Egrégio STF ...) mas sim por suas dançarinas". Por mais críticas que se faça a nossos legisladores, dificilmente se imaginaria um parlamentar brasileiro, dizendo -salvo se inspirado por um fortíssimo ódio e desequilíbrio emocional -que os parlamentares italianos eram mais conhecidos pela presença da atriz "Cicciolina" em seus quadros do que pelo descortínio político ...Nem se imaginaria pessoas de responsabilidade nos quadros políticos do Brasil dizendo, por exemplo, que o senhor Berlusconi é mais conhecido por suas aventuras amorosas com jovens do que por sua ressonância política, dado o fato da imprensa internacional divulgá-las com alarde.

9. A frase do deputado italiano é, pois, bastante expressiva de um estado de ânimo que não inspira segurança de que, hoje, inexistam naquele país razões para "fundados temores de perseguição". Fosse ela um comportamento isolado, poder-se-ia supor um exagero na ilação daí extraída. Sucede, todavia, que esta foi apenas uma dentre muitas manifestações expressivas de um estado de espírito destemperado e flagrantemente desproporcional em relação ao caso CESARE BATTISTI.
Com efeito, o ex-Presidente da República Italiana FRANCESCO COSSIGA afirmou que "o Ministro da Justiça do Brasil disse umas cretinices" e que o Presidente LULA era do tipo chamado na Itália de "cato-comunista". O Vice-Prefeito de Milão propôs um boicote aos produtos brasileiros "como forma de pressionar o Brasil a reconsiderar a decisão" de refúgio a CESARE BATTISTI. O Vice Presidente de Relações Exteriores do Senado da Itália, Senador SERGIO DIVINA defendeu o "boicote turístico ao Brasil". O Ministro da Defesa IGNAZIO LA RUSSA declarou que a decisão "coloca em risco a amizade entre a Itália e o Brasil", ameaçou "se acorrentar à porta da embaixada brasileira em Roma" e saiu à frente de uma passeata de protesto em Milão contra o refúgio a CESARE BATTISTI. Aliás, o próprio presidente do Conselho de Ministros Italiano, ROMANO PRODI, enviou carta pessoal ao presidente LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, encarecendo a importância 'para o Governo e a opinião pública da ltália que a extradição fosse deferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Será que isto ocorreria se estivesse em pauta um crime comum ? Ou, seria tratado de outra forma, isto é, com a serenidade da Justiça e das relações respeitosas entre as Nações, tanto mais sendo certo e sabido que, similarmente ao que ocorre em todos os demais países, existem dezenas de foragidos da Justiça Italiana pelo mundo afora, condenados por crimes comuns, mas onde a presença notória da Máfia exacerba o fenômeno?

10. Há outros exemplos mais do mesmo clima de descontrolada fúria que poderiam ser citados mas parece desnecessário mencioná-los. Se estes não são suficientes para ilustrar um estado de espírito desmesuradamente falto de proporção e, em consequência obviamente justificador de "fundados temores de perseguição", não haveria como reconhecer esta figura salvo se fosse explicitamente confessado pelas autoridades daquele País. De resto, se o clima é este, hoje, é de perguntar-se: como seria, então, à época do segundo julgamento do ora extraditando ?

11. Em conclusão: é inequívoco que o refúgio correspondeu a uma decisão tomada no âmbito de discrição administrativa e no qual, "in casu", existem as mais categóricas indicações da ocorrência de "fundados temores de perseguição", sendo incabível a revisão jurisdicional deste ato. Inversamente, o arquivamento do pedido de extradição é ato vinculado, por força do art. 33 da lei n° 9.474, de 22 de julho de 1997.

12. Indaga, ainda o Consulente se, vindo a ocorrer empate na extradição, deve ser aplicada a mesma regra do Regimento Interno prevista para o caso de "habeas corpus", de acordo com a qual, a teor do art. 146, parágrafo único, o Presidente da Corte não vota e o empate será interpretado como favorável ao acusado?
De acordo com este preceptivo: "No julgamento do habeas corpus, pelo Plenário, o Presidente não terá voto, salvo em matéria constitucional, proclamando-se, na hipótese de empate, a decisão maisfavorável ao paciente."
E claro a todas as luzes que o bem jurídico prestigiado neste comando foi a liberdade. No referido preceptivo a Suprema Corte manifestou sua prévia opção em prol deste valor relevantíssimo e o fez de forma tão assinalada que excluiu a possibilidade de um voto do Presidente assumir rumo que pudesse fazê-lo periclitar. Sendo este, pois - como evidentemente é - o sentido da regra em questão, resulta inequívoca sua aplicação perante situações da mesma compostura, isto é, em que se digladiem duas posições, uma das quais implicaria em fazer soçobrar a liberdade e outra em resguardá-Ia, quando a votação para decidir pela prevalência de uma ou de outra haja abicado em um empate.
Trata-se, já se vê, pura e simplesmente da aplicação da notória regra de interpretação, apontada por CARLOS MAXIMILIANO, nosso mestre maior de hermenêutica, segundo a qual "ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio". "Ou seja: onde existe a mesma razão, prevalece a mesma regra de direito" (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Ed. Forense, 15a ed., 1995, pág. 245).

13. De fato, seria manifestarnente descabido que, existindo um empate quanto à questão de confirmar ou infirmar o refúgio de CESARE BATTISTI fosse negada a opção "favor libertatis" suposta no parágrafo único do art. 146 do RISTF, pois em tal caso dita negativa traria implicada consigo não apenas a perda da liberdade de um extraditando, mas além disto uma perda até mesmo maior do que a admitida pelo direito brasileiro: a prisão perpétua. Deveras, a opção pela liberdade em caso de empate no julgamento de "habeas corpus" é garantida perante gravames à liberdade menos radicais do que os que estariam em pauta na hipótese de extradição de CESARE BA TTISTI, já que, se esta viesse a ocorrer, o sacrificio da liberdade estaria predefinido em termos radicais e absolutos: até a morte do extraditando.
Seria um sem-sentido que o Direito salvaguardasse o menos e deixasse a descoberto o mais; logo, interpretação que abonasse conclusão desta ordem pecaria por ilogismo.

4. Isto tudo posto e considerado, às indagações da Consulta respondo:
I - O ato do Ministro da Justiça que concedeu refúgio político a CESARE BATTISTI não configura ato vinculado. Pelo contrário, envolveu o exercício de competência compreensiva de aspecto discricionário, cuja avaliação e consequente decisão não pode ser substituída pelo juízo do Poder Judiciário, maiormente em face das circunstâncias concretas que o envolvem. Já o arquivamento do pedido de extradição é ato vinculado, imposto pelo art. 33 da lei n° 9.474, de 22.07.97.

II - Vindo a ocorrer empate na votação da extradição, deve ser aplicada a mesma regra do Regimento Interno prevista para o caso de "habeas corpus", de acordo com a qual, a teor do art. 146, parágrafo único, o Presidente da Corte não vota e o empate será interpretado como favorável ao acusado. É que, em um e outro caso está presente o mesmo fundamento lógico abraçado pelo Direito, ou seja, o de optar pelo princípio "favor libertatis", o qual se aplica ainda com maior razão em hipótese na qual a extradição implicaria, como ocorre no caso concreto, no agravo máximo à liberdade, ou seja, a prisão perpétua que, de resto, não é tolerada em nosso sistema jurídico.

É o meu parecer.
São Paulo, 21 de setembro de 2009
Celso Antônio Bandeira de Mello
OAB-SP nº 11.199

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