Monday, August 23, 2010

João Humberto Cesário, ilustre jurista pátrio, professor e magistrado do Trabalho do TRT da 23ª Região, do qual tenho a honra de figurar no rol de amigos, em seu ótimo blog Ambiência Laboral, http://ambiencialaboral.blogspot.com/, após comentar recente decisão do E. TST confirmando condenação por Danos Morais Coletivos, no importe de R$5milhões, imposta à Construtora Lima Araújo Ltda, proprietária das fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió, por exploração de trabalho escravo, faz importantes questionamentos sobre a ausência de competência à Justiça do Trabalho para julgar e processar os aspecto criminal da exploração do trabalho escravo, vez que decorrente da relação de trabalho a referida questão.

João Humberto, que é defensor da competência criminal da Justiça do Trabalho, faz os seguintes questionamentos:

1- qual o argumento racional para que se subtraia da Justiça do Trabalho a competência criminal, atribuindo-a à Justiça Federal (artigo 109, VI, da CRFB)?

2- é razoável que em um único tema jurídico, determinado órgão do Poder Judiciário conheça dos seus aspectos trabalhistas, civis e administrativos, enquanto outro se pronuncia sobre os meandros criminais?

3- a quem interessa tal dicotomia? à sociedade?!

Pois bem, em minhas Petições Iniciais Trabalhistas, tenho invocado o artigo 40 do Código do Processo Penal, requerendo que os juízes do trabalho notifiquem o Ministério Público Federal – MPF, quando caracterizados crimes decorrentes da relação de trabalho, para que se instaure o devido procedimento legal.

O resultado prático de tais requerimentos, entretanto, tem sido frustrante, vez que, se por um lado grande parte dos magistrados trabalhistas os indeferem, dizendo que a denúncia deve ser feita diretamente pelo próprio interessado, por um outro, quando acolhidos os referidos requerimentos, em apenas alguns poucos casos, não mais do que meia dúzia, nos quase 10 anos que adoto o referido procedimento, tiveram inquérito instalados, dos quais, entretanto, de nenhum tive notícias sobre resultado final, isto é, creio que a sanção penal decorrente da transgressão da legislação trabalhista não restou aplicada.

Passando às respostas aos questionamentos feitos pelo i. Professor e Doutor João Humberto Cesário, iniciando pelo questionamento de número 2 de seu blog, onde ele questiona se é “razoável que em sobre um único tema jurídico, determinado órgão do Poder Judiciário conheça dos seus aspectos trabalhistas, civis e administrativos, enquanto outro se pronuncia sobre os meandros criminais?”

Creio que, de fato, não há sentido na dictomia apresentada e questionada pelo professor. Essa dictomia, entrementes, decorre do estabelecido na Constituição Federal, em artigo 109, o qual determina que compete à Justiça Federal julgar e processar os crimes previstos em tratado ou convenção internacional (inciso V), as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo, qual seja, grave violação de direitos humanos (inciso V-A), os crimes contra a organização do trabalho (inciso VI), nas quais, o trabalho escravo e o infantil, certamente, se enquadram.

Segundo MARCELO JOSÉ FERLIN D'AMBROSO, douto Procurador do Trabalho da 12ª Região, em artigo publicado no Site Jus Navegandi[1], no qual é defendida a competência criminal da Justiça do Trabalho, o Juiz do Trabalho JÔNATAS DOS SANTOS ANDRADE, em exposição apresentada no II Encontro de Juízes e Procuradores do Trabalho de Santa Catarina, trouxe à baila a tese desenvolvida no STF, por ocasião de decisões acerca da competência da Justiça do Trabalho em ações acidentárias, sobre a unidade de convicção. Buscando-se elementos sobre a teoria, colhe-se do julgado no RE 438639, da Excelsa Corte, o seguinte: "salientou-se que deveria intervir no fator de discriminação e de interpretação dessas competências o que se chamou de ‘unidade de convicção’, segundo a qual o mesmo fato, quando tiver de ser analisado mais de uma vez, deve sê-lo pela mesma justiça." Ou seja, o Supremo Tribunal Federal reconhece hoje que a cisão de competência não favorece a aplicação de justiça, e que a divergência de decisões para ações decorrentes da mesma relação de direito material invocada entre órgãos jurisdicionais distintos causa um impacto deletério no jurisdicionado

Então, a dictomia estabelecida na Constituição Federal, resultando que os crimes decorrentes da relação de trabalho sejam julgados pela Justiça Federal, em face ao princípio da Unidade de Convicção, deve ser considerada equivocada, mormente em sua forma absoluta, hoje em vigor.

Passamos agora aos demais questionamentos do Professor e Juiz Dr. João Humberto.

Assim, prima facie, é preciso destacar que além da exploração do trabalho escravo e infantil - cancros inerentes ao capitalismo moderno, que leva ao extremo a exploração do homem pelo homem na busca desmedida do lucro – há várias outras lides criminais que decorrem da relação de trabalho.

Tipificados nos artigos 197 a 207 do Código Penal, temos as seguintes figuras penais, a saber, atentado contra a liberdade de trabalho; contra a liberdade de contrato de trabalho e boicotagem violenta; contra a liberdade de associação; paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem; paralisação de trabalho de interesse coletivo; invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, sabotagem; frustração de direito assegurado por lei trabalhista; frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho; exercício de atividade com infração de decisão administrativa; aliciamento para o fim de emigração e aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional.

Antes de continuar com este pequeno artigo, um parênteses para expor o que entendo por DIREITO, fazendo minhas as palavras de Piotr Stutchka (jurista bolchevique, primeiro Comissário do Povo para a Justiça do Estado Soviétivo Russo) "o Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que corresponde aos interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder organizado (o Estado)." [2]

Neste diapasão, com todo o respeito àqueles que defendem o deslocamento amplo da competência criminal para julgar fatos decorrentes da relação de trabalho para a Justiça do Trabalho, o dito popular “pau que bate em Chico, bate em Francisco”, aplicável perfeitamente à espécie, me leva à conclusão de que esse deslocamento pleno pode ser equivocado, porquanto, prejudicial aos trabalhadores e suas organizações.

Ademais, voltando ao dito popular acima transcrito, é certo que, em se tratando de normas coercitivas estatais, elas batem muito e com muita força nos chicos, nos zés, nos joãos, nos pedros, enfim, no povo pobre, enquanto acaricia e protege aqueles oriundos das classes sociais mais abastadas. O caso Pimenta Neves, que no momento em que escrevo este texto, completa 10 anos impunidade, mesmo o referido jornalista tendo confessado o assassinato de sua então namorada, ou, ainda, os inúmeros casos de impunidade de corruptos e corruptores em nosso país, são exemplos dessa realidade lamentável. A composição da população carcerária, idem.

Assim, não recebo com grande entusiasmo a tese de deslocamento para a Justiça do Trabalho da competência criminal, mormente se essa competência vier de forma ampla, em face de minha concepção e compreensão acerca do Direito acima explanada e, ainda, por fazer um corte de classe da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho, os quais não se diferenciam, essencialmente, na composição de Magistratura e do Ministério Público dos demais ramos do direito.

Explico-me: diante da própria natureza do direito, que em minha opinião corresponde a um sistema de relações sociais para assegurar os interesses da classe dominante de determinado tipo de sociedade, por um lado, e, por outro, e de uma análise sociológica da composição de classe da magistratura e do ministério público - formados por juristas que, em sua maioria, ou são provenientes das classes mais abastadas ou com essas acabam se identificando no decorrer de suas carreiras, inclusive, em face de suas boas e merecidas remunerações -, não é difícil antever que dotar a Justiça do Trabalho de competência criminal, poderá levar que fenômenos reacionários, como os interditos proibitórios - cada vez mais freqüentes na seara trabalhista, utilizados para impedir o exercício pleno do direito de greve (impedindo os piquetes) - adquiram uma face mais dramática, transformando a Justiça do Trabalho em mais palco da criminalização do movimento social/sindical, uma realidade crescente neste início de século.

Uma greve, por exemplo, na qual ocorra venha ocorrer uma ocupação de fábrica, um piquete ou, ainda, um enfrentamento com forças repressivas estatais, não restam dúvidas, poderá resultar em processos e condenações criminais impostas pela Justiça do Trabalho contra dirigentes e ativistas sindicais, vez que tais fatos podem ser enquadrados, sem maiores dificuldades, nos tipos penais acima expostos (artigos 197 a 207 do Código Penal).

Frente às minhas ponderações, certamente haverá quem argumente que os tipos penais acima mencionados já existem e que, portanto, não seria o deslocamento para a Justiça do Trabalho da competência criminal o motivo do aumentos da repugnante criminalização do movimento sindical e social dos trabalhadores.

Entretanto, no momento atual - já que nada impede que com um recrudescimento das relações sociais essa realidade se altere - tais tipos penais não são amplamente aplicados em desfavor do movimento sindical, exatamente porque a Justiça Federal e a Justiça Comum, assoberbadas com seus processos tradicionais, consideram os delitos decorrentes das relações de trabalho, tendo em vista que alheios às suas realidades, como de menor potencial ofensivo, não aplicando, por conseguinte, as penalidades do Código Penal contra o movimento social e sindical organizado.

Todavia, com o deslocamento amplo da competência criminal para a Justiça do Trabalho, data maxima venia, as conseqüências criminais da relação de trabalho seria exatamente o campo de autuação penal deste ramo especializado da justiça, quadro perfeito para aplicar penalizantes, atualmente não aplicadas.

É neste aspecto, pois, renovadas as vênias, que reside o grande perigo do deslocamento pleno da competência criminal à Justiça do Trabalho processar e julgar processos decorrentes da relação de trabalho, ao qual, acredito, não se atentaram os defensores desta tese, via de regra, advogados, juízes e procuradores do trabalho comprometidos com uma sociedade democrática e com a defesa da dignidade humana dos trabalhadores.

Portanto, com todo o respeito à opiniões divergentes, sou extremamente contrário dotar amplamente a Justiça do Trabalho de competência criminal. Sou contra dar mais tentáculos ao estado repressor, pois a Justiça do Trabalho faz parte do estado, para punir aos trabalhadores.

Todavia, considerando que a defesa da competência criminal à Justiça do Trabalho parte da necessidade de enfrentar, coibir e erradicar o trabalho escravo, infantil e/ou degradante, para se evitar que essa competência criminal se volte contra os trabalhadores e suas organizações, é necessário que ela não seja ampla, mas restrita ao trabalho escravo, ao trabalho infantil e, ainda, ao aliciamento de trabalhadores.

Lado outro, para evitar que interpretações do texto legal que venha estabelecer essa competência não sejam usadas em desfavor dos trabalhadores, até mesmo em face da atual redação do artigo 109 da Constituição Federal, essa mudança restrita deva vir em forma de Emenda Constitucional, que incorporasse mais um inciso ao artigo 114 da Carta Magna, declarando expressamente que, em matéria criminal, seria competente a Justiça do Trabalho apenas para julgar os processos criminais decorrentes da prática de trabalho escravo, do trabalho infantil e do aliciamento de trabalhadores.

Se assim não for, o lobo mau coloca medo, principalmente porque, em pele de cordeiro, está a entoar cantos de sereia!

ADRIANO ESPÍNDOLA CAVALHEIRO, é advogado na área trabalhista/sindical, atuando como assessor jurídico de entidades sindicais de trabalhadores (sindicatos e federações). Membro da Renap (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares) e do Corpo Jurídico da CSP- Conlutas (Central Sindical e Popular Coordenação Nacional de Lutas). É militante do PSTU. Mantém o Blog Defesa do Trabalhador http://defesadotrabalhador.blogspot.com/. Contatos: defesadotrabalhador@terra.com.br



[1] D'AMBROSO, Marcelo José Ferlin. Competência criminal da Justiça do Trabalho e legitimidade do Ministério Público do Trabalho em matéria penal: elementos para reflexão. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 995, 23 mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 21 ago. 2010.

[2] Piotr Stutchka, in, Problema do Direito de Classe e da Justiça de Classe, Editora Sundermamm

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