Friday, November 20, 2009

por Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA)
MI 2152711

A Lei 9474 de 1997, conhecida como Lei de Refugiados, estabelece no Artigo 1º quais são as pessoas qualificáveis para obter refúgio no Brasil. No primeiro item se menciona a os que, devido a fundados temores de perseguição, não queiram ou não possam voltar ao seu país.

Se os fundadores temores de perseguição dão um forte motivo para garantir o refúgio, com maior razão, esses temores devem proibir a extradição. Com efeito, se não damos refúgio a uma pessoa perseguida, estamos sendo omissos face ao risco de outro ser humano. Agora, extraditar significa enviar diretamente ao perigo. Muitas vezes, não podemos proteger alguém, mas muito mais grave é ajudar a que alguém seja prejudicado.
Algumas pessoas podem achar que a Lei de Refugiados não merece ser cumprida, já que, de fato, foi “pisada” pelo relator do Caso Battisti, e por os que acompanharam seu voto. Então, vejamos o que diz o Tratado de Extradição entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana (Roma, 17/10/1989; Brasília, 14/07/1993; DOU, 12/07/1993). Não pode duvidar-se do valor deste tratado, já que foi assinado também por Itália.

No Artigo 3, inciso (f), afirma-se que a extradição não será concedida, se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação.

Ainda, no Artigo 5 (b) afirma-se que a extradição tampouco será concedida houver fundado motivo para supor que a pessoa reclamada será submetida a pena ou tratamento que de qualquer forma configure uma violação dos seus direitos fundamentais.

Veja a íntegra do tratado em:
www.mj.gov.br/data/Pages/MJB53EDE30ITEMID09581BA8F888491EB6B01761356533E8PTBRIE.htm ==> Cooperação Internacional > Acordos Internacionais > Extradição > alinha 12

No caso de Cesare Battisti, existe um temor fundado de perseguição, porém tem algo mais: a certeza da perseguição. Vou mencionar várias informações que mostram que, se Cesare Battisti pisar território italiano, sua vida e sua integridade física e psíquica estarão condenadas.
Prisão Perpétua

Em março de 2009, vários italianos condenados a prisão perpétua enviaram uma carta aberta ao Presidente Lula, agradecendo pelo fato de que, ao recusar a extradição de Battisti, estava mostrando sua preocupação por uma pena que não é outra coisa que a morte lenta. Na mesma carta, relatam as novas aberrações introduzidas pelo governo italiano, entre as quais se encontra a prisão de jornalistas, e citaam a frase de Benjamin Constant: [a prisão perpétua é] “uma consagração da escravidão e uma degradação da condição humana”.

É por isso que a Constituição Federal Brasileira (artigo 5º, XLVII) proíbe a prisão perpétua e, nos casos em que o STF se pronuncia favoravelmente à extradição passiva, o tribunal inclui uma cláusula vedando o cumprimento de prisão maior de 30 anos.

Em geral, este tipo de restrição se considera atendida quando o país requerente assina um compromisso formal de cumprir com ela. Normalmente, não há motivos para duvidar sobre o cumprimento desta promessa. Entretanto, a coisa é diferente no caso de Battisti. Vejamos:

No dia 7 de maio de 2007, o então Guardasigilli (Ministro de Justiça da Itália) Clemente Mastella teria feito uma revelação ao Alberto Torregiani, segundo o jornal La Repubblica, um dos mais sérios da península. Reproduzo literalmente o começo do §3:

Nella conversazione con Alberto Torregiani, il ministro avrebbe spiegato che quel riferimento al fatto che Battisti non rischierà il carcere a vita, era dettato dalla volontà di evitare eventuali problemi con l'autorità giudiziaria del Brasile, paese nel quale l'ergastolo non è previsto.

Na conversa com Alberto Torregiani, o ministro teria explicado que aquela referência ao fato de que Battisti não corre risco de passar a vida no cárcere, foi ditado pela vontade de evitar qualquer problema com a autoridade judiciário do Brasil, país no qual não está prevista a cadeia perpétua.

O antigo jornal conservador Corriere della Sera publicou, na mesma época, uma notícia que afirmava que Mastella tinha prometido ao Brasil que a pena de prisão perpétua não é real, e que o preso tem direito a descontos, liberdade antecipada, saídas periódicas e outras vantagens, o qual enfureceu aos parentes de Torregiani e Sabbadin.
http://archiviostorico.corriere.it/2007/maggio/07/Battisti_parenti_delle_vittime_contro_co_9_070507015.shtml
 
Condições Prisionais
O problema de se realmente Battisti seria realmente obrigado a cumprir prisão perpétua ou não pode parecer sem sentido, quando se pensa que as condições de vida nas prisões italianas conduzem muitas pessoas ao suicídio. A ONG de Direitos Humanos, Antígone, que se especializa na crítica ao sistema prisional italiano, publicou uma informação sobre os suicídios nas cadeias. Desde 2000 até começos desse ano, há uma média aproximada de 60 casos por ano. (Os valores variam um pouco segundo a fonte, entre 501 e 518 em nove anos.)

Veja o resumo do relatório de Associazione Antígone sobre as prisões italianas:
www.osservatorioantigone.it/upload/images/6914oltre%20il%20tollerabile%20stampa.pdf > síntese VI rapporto.

O tratamento cruel e degradante nas prisões italianas também é frequente. Esse tratamento está inclusive legalizado pelo Ato Administrativo Prisional de 1975, cujo artigo 41-bis institui um regime, que é único em Ocidente (o sistema de isolamento das prisões americanas é considerado menos extremo). A pessoa colocada neste regime está totalmente isolada do resto de mundo e não tem direito a lazer, esporte, trabalho, cartas, telefonemas, etc., nem qualquer outro contato, salvo uma visita por mês de um parente direto, feita através de interfones. Estas visitas são autorizadas para evitar que os familiares dos detentos façam denúncias sobre desaparição e morte dos internos.

É falso o que habitualmente se diz de que o 41-bis foi criado para punir os mafiosos. (Mesmo se fosse assim, isto não o justificaria.) De fato, foi especialmente criado para presos políticos, sindicais e estudantes, e só se estendeu às sociedades criminosas em 1992, depois do assassinato de Falcone. Atualmente, é verdade que ele se aplica especialmente a mafiosos, porque os presos políticos sobreviventes têm diminuído.
Veja a matéria escrita em inglês por especialistas em sistemas prisionais italianos.
www.senzacensura.org/public/rivista/sc02_0911en.htm
 
Nesta matéria também se informa que o sistema é aplicado com freqüência a imigrantes clandestinos. Sugiro a seguinte reflexão: se existe um tratamento assim contra pessoas que não têm antecedentes políticos nem criminais, que apenas entram em Itália para arrumar emprego, que pode esperar um ex-militante de esquerda? Especialmente, num caso como o de Battisti, que tem sido ameaçado por todos os meios de comunicação, pelos parentes das vítimas, por políticos e até por membros do governo.
Itália é, além disso, o único país de Europa, salvo eventualmente Grécia (não tenho os dados exatos sobre Grécia neste momento), onde a tortura não está prevista no código penal. Este fato encoraja, mais que em qualquer outro país da região, a aplicação de tormentos aos prisioneiros, já que se o detento não morrer ou ficar fortemente ferido, não há nenhuma figura jurídica para processar o torturador.

Além de Antígone, e outras organizações menos conhecidas de Direitos Humanos, também Anistia Internacional afirma em seu relatório de 2009, que até essa data a tortura não era considera crime na Itália. Veja o relatório de Anistia em português, inglês ou espanhol, em:
http://thereport.amnesty.org/pt-br/regions/europe-central-asia/italy

Ameaças Diversas
Os jornais italianos difundem, desde a época em que Battisti foi detido no Brasil, notícias dos familiares de pessoas que foram vítimas de atos terroristas (sejam de “esquerda” ou de direita). Para a associação destes familiares, AIVITER, todos os crimes são atribuídos à esquerda.

Veja o site desta associação, na parte referida a Battisti:
www.vittimeterrorismo.it/iniziative/battisti/battisti09.htm
Inclusive, a vezes se menciona a Battisti na Itália como se tivesse sido membro das Brigadas Vermelhas, uma organização onde ele nunca esteve. Em La Repubblica, muitos familiares de vítimas manifestam desconfiança sobre a colocação de Battisti na prisão. Alguns dizem: "Quell'uomo presto uscirà dal carcere" (Aquele homem fugirá da cárcere logo.) Isto faz pensar que algumas pessoas cogitam sobre a possibilidade de que ele seja morto.
www.repubblica.it/2007/03/sezioni/cronaca/battisti-arresto/mastella/mastella.html
 
Itália não pode executar oficialmente ninguém porque a pena de morte está proibida em toda a UE. Nos últimos tempos, porém, Federico Aldrovandi e Aldo Bianzino, dois homens detidos apenas com base em averiguação de antecedentes, morreram nas mãos da polícia, sem que houvesse nenhuma condenação. O caso de Aldrovandi não foi investigado, e o de Bianzino tem produzido perícias contraditórias. (Veja o texto já citado de Anistia Internacional).

Outra ameaça potencial é a representada pelos métodos parapoliciais e paramilitares que os governos italianos usam desde há muito tempo. Há menos de 4 anos, o Serviço de Inteligência do Exército, SISMI contratou o Dipartimento Studi Strategici Antiterrorismo, um grupo privado dirigido por um ex-policial e ativo militante fascista. O SISMI tinha oferecido E$ 2 milhões para capturar Battisti e outros dois refugiados italianos, um deles morando na Suíça e outro na Nicarágua. O operativo não foi realizado por razões desconhecidas. Não obstante, os diretores do grupo foram liberados.
www.privateforces.com/index.php?option=com_content&task=view&id=694

Este tipo de problema, que acontece com freqüência nos serviços secretos italianos, têm conduzido a muitas mudanças de nome e estrutura desses serviços. Aparentemente, os grupos parapoliciais privados que eles contratam também mudam de nome. Se Battisti fosse devolvido às prisões italianas, é claro que eles não precisariam seqüestrar-lo, mas este tipo de grupos também se especializa em assassinatos.

Há um fato suspeito na pressa e ansiedade com que o estado italiano e grande parte da opinião pública exigem a devolução de Battisti desde 2007. Se o que eles querem é justiça (na hipótese de que Battisti realmente fosse culpável) poderiam considerar suficiente que ele esteja preso no Brasil. De fato, em Brasil há alguns presos estrangeiros que seus países não reclamam porque consideram que a punição imposta aqui é suficiente. Entretanto, na Itália há grande “agitação” pelo retorno de Battisti. O sindicato de carcereiros quer que ele volte o mais rápido possível, o Ministro de Defesa diz que vai “falar” com Battisti, quanto “tiver ele aqui”. A procura de justiça não se coaduna com todo esse açodamento.

Finalmente, quero referir-me de maneira genérica ao grande número de expressões injuriosas, ameaças e expressões violentas de políticos e magistrados italianos, mas também jornalistas e, sobretudo, familiares de vítimas de atentados. A forma aparentemente incontrolada em que estas expressões foram dirigidas contra os que deram refúgio a Battisti têm chamado muito a atenção.
Tanto o Ministro da Justiça, Tarso Genro, como o advogado de Battisti, Luís Barroso, e o juiz Marco Aurélio de Mello, entre outros, têm observado com perplexidade o caráter ameaçador e totalmente inusitado desse comportamento. É um fato evidente que não há casos comparáveis dessa forma de conduta nas relações internacionais do mundo moderno.

Não é possível avaliar exatamente a probabilidade, mas há quase certeza absoluta de que Battisti não sobreviveria na Itália muito tempo, depois que a publicidade sobre sua extradição fosse esquecida.

A extradição de Battisti é uma condenação quase certa à tortura e à morte. O Brasil não pode destruir para sempre sua fama de país hospitaleiro e generoso que possui desde a época do Império, e que o tem transformado no paradigma internacional de cordialidade.
Já a anulação que fez o STF do refúgio dado pelo Ministro da Justiça é um fato gravíssimo, ilegal e exorbitante, que pode colocar em risco a vida dos mais de 4.000 refugiados que o país possui.

Sabemos que a proteção dada a Battisti atrairá sobre o Presidente Lula o veneno da mídia, das elites e da Itália. Mas, esse é um preço que deve pagar-se se desejamos preservar o que mais importa: a vida humana e o prestígio do povo brasileiro.

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